Li essa análise do conto “O embargo” de José Saramago elaborada pelo professor Anísio e achei muito interessante. Aproveitem a leitura.
JOSÉ SARAMAGO - EMBARGO
PROF: ANISIO
O HOMEM COMO VÍTIMA DO MUNDO MODERNO.
A situação que o nosso personagem se encontra dentro do automóvel vai se tornando cada vez mais angustiante, até chegar ao desespero. Não há como pedir ajuda, o homem é realmente só, não há como sair de dentro do carro, não há como se livrar de algo que já faz parte de si, ou de algo do que ele passou a ser parte. O desespero, a agonia, a aflição são os sentimentos bem retratados por esse homem embargado, num mundo cheio de burocracias e embargos. O homem só pensa em ficar distante da humanidade, e vai para longe, até onde ninguém possa vê-lo. Preso e humilhado diante da situação ele luta até não conseguir mais: “era como se quisesse levantar o mundo”.
O fato de a gasolina do carro ter acabado é intrigante. Teria acabado a gasolina e o carro parado e, como o homem e o carro já eram o “mesmo aço”,
acabaria também a sua força? Ou o fato de a gasolina terminar seria até engraçado, pois um homem saíra de um embargo – o problema com o carro – e entrado num outro, a falta de gasolina, a falta do automóvel?
São leituras possíveis dentro de um limite quase interminável do feixe sugestivo de Saramago. Esse homem moderno que está em total crise de identidade,que está só no mundo, que não consegue ficar parado,que depende de um meio político-econômico-social gerido pela globalização e por potências, mas que ainda se prende a certas superstições e arcaísmos.
JOSÉ SARAMAGO – EMBARGO
Um homem normal faz o que costuma fazer todos os dias. Acorda, se arruma, sai de casa, pega o seu carro. Mas esse dia se faz diferente. Depois de parar num posto de gasolina ele percebe que seu carro começa a ter vontade própria e pára em todo o posto que ofereça gasolina. Sabe-se que há um embargo de petróleo causado pelos árabes, esse embargo vai afetar o mundo inteiro, um resultado da globalização. Os postos de gasolina estão sempre com filas de automóveis em busca de combustível, que se tornou fonte rara. O carro que toma vida embarga a vida rotineira do homem, atrasa-o do trabalho. A perplexidade de ver o carro com vida faz o homem perceber que agora ele está preso dentro dele, grudado ao banco, impossibilitado de vontades, sozinho, sem ajuda.
Há uma ligação intrínseca entre o conto e certas consequências causadas no ser humano pela nova relação instaurada pela globalização. Vemos um garoto que passa em frente ao prédio, mas ele passa bem vestido, todo coberto, como se quisesse se proteger de tudo, dos outros, do mundo. O individualismo, causado pela violência urbana, pelo uso da Internet como entretenimento, a desconfiança nas pessoas – nosso personagem vai pedir ajuda à mulher, mas teme os procedimentos dela, não confia na própria mulher – o homem cada vez mais só e fechado. A relação mais bem exposta no conto é mesmo a entre o homem e a máquina. Mostra o homem dependente dela, cada vez mais envolvido, cada vez mais estressado com os problemas que a máquina lhe causa. O ser humano é totalmente dependente de suas criações, e o carro, neste caso, é a representação mais perfeita desta dependência, tal máquina passa por um processo de transformação e aos poucos vai “impondo suas vontades ao homem”, o que na verdade poderia ser uma imposição do próprio homem, já tão materialista: “meu carro tá querendo um banho”, “ta desejando um bom óleo!”, quantas vezes não ouvimos frases como essas?
EMBARGO
A subserviência do homem frente à máquina.
Ele é um homem anônimo, como todos os outros de uma sociedade urbana. Um homem da classe média, social e ideologicamente domado. Casado com uma mulher com quem convive, em uma rotina onde o afeto se tornou algo artificial.
Aquele dia seria diferente, desde o sono interrompido, o silêncio no prédio ao rato morto na calçada, aquele dia seria diferente. Aquele rato morto é o símbolo do individualismo urbano. Está na calçada e por isso ninguém se preocupa em removê-lo, um absoluto descaso com o que é público, com o que é social. Mostra o grau de individualismo que caracteriza essa sociedade. Valem lembrar que a chuva vai remover o rato.
O veículo funciona e isso deixa o homem contente. É como se a felicidade humana estivesse intrinsecamente ligada ao funcionamento das máquinas criadas pelo homem.
Advém de um plano global: os árabes se recusaram a vender petróleo para o ocidente e isso estava afetando a vida diária, pois havia um racionamento de combustíveis e os postos de abastecimento estavam sempre lotados, aborrecendo o homem. Inicialmente, o motorista não percebe que seu carro está com vontade própria, mas está: acelera, ultrapassa e entra nos postos de abastecimento à revelia de seu dono.
José Saramago, Nobel/98: possui um olhar severo sobre o comportamento do homem que vive
As horas perdidas em postos de abastecimento, em itinerários confusos e congestionamentos, levam o homem à decisão de ir para o escritório onde trabalha. Mas ao tentar sair do veículo não consegue, pois está preso a ele.
O HOMEM OBJETUALIZADO OU COISIFICADO
Como sua vontade está sujeita a uma mais poderosa, o motorista passa por experiências humilhantes: considera-se ridiculamente preso; urina-se; foge de sua mulher que desconfia de sua sanidade mental.
O RETORNO À VIDA PRIMITIVA
O carro leva o homem para fora da cidade, na qual o embargo petroleiro fizera esgotarem-se todas as bombas. Seria uma metáfora da necessidade que o homem possui de se libertar da vida urbana, da civilização mecanizada.
TRECHO FINAL
Sentia fome. Urinara outra vez, humilhado demais para se envergonhar e delirava um pouco: humilhado, himolhado. Ia declinando sucessivamente, alterando as consoantes e as vogais, num exercício inconsciente e obsessivo que o defendia da realidade. Não parava porque não sabia para que iria parar. Mas, de madrugada, por duas vezes, encostou o carro a berma e tentou sair
devagarzinho, como se entretanto ele e o carro tivessem chegado a um acordo de pazes e fosse a altura de tirar a prova da boa-fé de cada um. Por duas vezes falou baixinho quando o assento o segurou, por duas vezes tentou convencer o automóvel a deixá-lo, por duas vezes num descampado nocturno e gelado, onde a chuva não parava, explodiu em gritos, em uivos, em lágrimas, em desespero cego. As feridas da cabeça e da mão voltaram a sangrar. E ele, soluçando, sufocado, gemendo como um animal aterrorizado, continuou a conduzir o carro. A deixar-se conduzir.
Toda a noite viajou sem saber por onde. Atravessou povoações de que não viu o nome, percorreu longas rectas, subiu e desceu montes, fez e desfez laços e deslaços de curvas, e quando a manhã começou a nascer estava em qualquer parte, numa estrada arruinada, onde a água da chuva se juntava em charcos arrepiados à superfície. O motor roncava poderosamente, arrancando as rodas à lama, e toda a estrutura do carro vibrava, com um som inquietante. A manhã abriu por completo, sem que o sol chegasse a mostrar-se, mas a chuva parou de repente. A estrada transformava-se num simples caminho, que adiante, a cada momento, parecia que se perdia entre pedras. Onde estava o mundo? Diante dos olhos eram serras e um céu espantosamente
baixo. Ele deu um grito e bateu com os punhos cerrados no volante. Foi nesse momento que viu que o ponteiro do indicador da gasolina estava em cima do zero. O motor pareceu arrancar-se a si mesmo e arrastou o carro por mais lugar, mas a gasolina acabara.
A testa cobriu-se-lhe de suor frio. Uma náusea agarrou nele e sacudiu-o dos pés a cabeça, um véu cobriu-lhe por três vezes os olhos. Às apalpadelas, abriu a porta para se libertar da sufocação que aí vinha, e nesse movimento, por que fosse morrer ou porque o motor morrera, o corpo pendeu para o lado esquerdo e escorregou do carro. Escorregou um pouco mais, e ficou deitado sobre as pedras. A chuva recomeçara a cair.
José Saramago foi conhecido por utilizar um estilo oral, coevo dos contos de tradição oral populares em que a vivacidade da comunicação é mais importante do que a correcção de uma linguagem escrita. Todas as características de uma linguagem oral, predominantemente usada na oratória, na dialéctica, na retórica e que servem sobremaneira o seu estilo interventivo e persuasivo estão presentes. Assim, utiliza frases e períodos compridos, usando a pontuação de uma maneira não convencional; Os diálogos das personagens são inseridos nos próprios parágrafos que os antecedem, de forma que não existem travessões nos seus livros. Este tipo de marcação das falas propicia uma forte sensação de fluxo de consciência, a ponto do leitor chegar a confundir-se se um certo diálogo foi real ou apenas um pensamento. Muitas das suas frases (i.e. orações) ocupam mais de uma página, usando vírgulas onde a maioria dos escritores usaria pontos finais. Da mesma forma, muitos dos seus parágrafos ocupariam capítulos inteiros de outros autores. Por isso, se o leitor se habituar ao o seu estilo, a sua leitura é muito agradável, pois o seu ritmo está muito próximo da eloquência oral do Povo Português.
Estas características tornam o estilo de Saramago único na literatura contemporânea, sendo considerado por muitos críticos um mestre no tratamento da língua portuguesa. Em 2003, o crítico norte-americano Harold Bloom, no seu livro Genius: A Mosaic of One Hundred Exemplary Creative Minds ("Génio: Um Mosaico de Cem Exemplares Mentes Criativas"), considerou José Saramago "o mais talentoso romancista vivo nos dias de hoje" (tradução livre de the most gifted novelist alive in the world today), referindo-se a ele como "o Mestre". Declarou ainda que Saramago é "um dos últimos titãs de um género literário que se está a desvanecer".
Para saber mais sobre esse renomado escritor pesquise no site abaixo.
Gostei do seu blog! Muito obrigada pela análise do texto de Saramago. Parabéns pelo trabalho que desenvolve na escola.
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