Muitos elementos constituem a possibilidade de leitura de um bom texto | ||||
http://www.revistalingua.uol.com.br/ Marcela Franco Fossey
Em geral, quando lemos um texto, duas coisas podem acontecer: não entendemos o que ele "quis dizer" ou entendemos - e neste caso, costumamos creditar o entendimento ao nosso conhecimento da língua. Nas linhas a seguir, nosso objetivo é questionar a concepção de leitura como sendo um processo de decodificação de significados contidos na língua, e mostrar que os textos se constituem de muitos outros elementos. Para ler adequadamente um texto, é preciso mais do que apenas saber português (ou inglês, ou alemão, ou chinês...). Significa dizer que o texto é composto de muitos ingredientes que constituem os sentidos que ele "suporta": além da língua, modos de circulação, suporte material, configuração cultural, autores, leitores. Tais ingredientes não são acessórios ou secundários, mas centrais para a compreensão do que lemos no nosso dia a dia. Há, enfim, um quadro interativo que precisamos levar em conta - o que, na verdade, já fazemos de maneira inconsciente - no momento da leitura. Depósito As diversas teorias do texto e do discurso propõem conceitos que nos ajudam a lidar com esse quadro interativo. Conceitos como o de enunciação, dialogismo, intertextualidade, interdiscursividade, só para citar alguns, são centrais nesta abordagem que privilegia o caráter predominantemente aberto dos textos. Parece importante ressaltar, porém, que defender que os textos não são uma espécie de depósito de um único significado, que estaria contido apenas na sua materialidade linguística, não significa defender, implicitamente, que todas as leituras são válidas ou um texto não "tem" sentido. Se há quem acredite que o bom leitor é o que consegue resgatar o sentido de um texto (que estaria depositado nele), no outro extremo há os que delegam aos leitores todo o processo de significação (como se não houvesse nenhum sentido "no" texto). No entanto, a materialidade textual, em todas as suas dimensões, com todos os seus ingredientes, impõe limites às interpretações possíveis. Assim, se para um livro, um poema, um desenho animado não há uma única leitura possível, também não podemos supor que existem milhares de possibilidades de leitura. Sentidos veiculados Aqui propomos algo que fica de certa forma no meio do caminho: o sentido de um texto não está nem só na língua, nem só nos leitores - e nem na intenção de seu autor. Os sentidos veiculados por um texto emergem da língua e dos leitores, e também da sua organização textual, dos seus modos de circulação etc. Trabalharemos com a noção de "cena de enunciação", tal como proposta por Dominique Maingueneau, em Análise de Textos de Comunicação (1998, tradução Cecília P. De Souza-e-Silva e Décio Rocha. São Paulo: Editoria Cortez, 2004) e Cenas da Enunciação (Curitiba: Criar Edições, 2006). Trata-se de uma proposta de tratamento dos textos que, em boa medida, dá conta de explicitar muitos dos processos envolvidos no momento da leitura. Vejamos com mais cuidado do que se trata. Quando temos um texto em mãos, devemos ser capazes de identificar a qual tipo de discurso ele está associado. Se recebemos um panfleto na rua, sabemos dizer se se trata de um panfleto religioso, político, publicitário etc. Ao definir o tipo de discurso, definimos também como somos interpelados diante desse material: como uma pessoa religiosa, um cidadão, um consumidor. Maingueneau chama a isso de "cena englobante". Mas, além dos tipos de discurso, os textos estão submetidos a restrições que os gêneros impõem. Fala-se, então, em "cena genérica", que diz respeito aos gêneros de discurso (reportagem, sermão, panfleto, poema...). A noção de "gênero discursivo" está em boa medida associada às condições de produção dos discursos e tal categorização apoia-se em critérios bastante heterogêneos (tipo de conteúdo, organização textual, modo de circulação etc.). Relações Há uma relação de restrição entre cena englobante e genérica. Nem todos os tipos de discurso podem se materializar em todos os gêneros: o discurso científico, por exemplo, nunca é veiculado na forma de um poema ou de uma novela. Esses são gêneros tipicamente literários. Espera-se que as "descobertas" sejam comunicadas na forma de um paper que seja publicado em uma revista especializada, ou de um abstract nos anais de um congresso, ou de uma palestra em um encontro de especialistas... Muitos discursos se restringem a essas duas cenas. Mas há casos em que uma terceira cena pode intervir: a "cenografia". Podemos dizer que a cenografia é o lugar onde o texto se torna único. Por exemplo, a canção Bye Bye Brasil, de Roberto Menescal e Chico Buarque, feita para o filme homônimo de 1979 de Cacá Diegues, tem cenografia muito interessante, essencial para os sentidos que a música suporta: o que ouvimos é um aventureiro contando suas perambulações pelo Norte do país a sua namorada, em um orelhão público. Assim, sua cena englobante é a das expressões artísticas/musicais, sua cena genérica é a da canção, e sua cenografia a de uma conversa em um orelhão. Podemos concluir que a música é um diálogo em um telefone público a partir de indícios (bastante explícitos, na verdade) como os versos: "Baby, bye! Bye! / Abraços na mãe e no pai / Eu acho que vou desligar / As fichas já vão terminar..." Além disso, há uma estruturação típica de um diálogo em que só temos acesso à fala de um dos interlocutores. E o que esse interlocutor diz são coisas típicas de um viajante, relatos esparsos de suas aventuras ou do momento específico em que ocorre a conversa. "Pintou uma chance legal / Um lance lá na capital / Nem tem que ter ginasial ou Tem um japonês trás de mim / Eu vou dar um pulo em Manaus / Aqui tá quarenta e dois graus..."
Mambembe Outro aspecto relevante é a própria melodia, que especialmente na última estrofe fica mais acelerada, quando as últimas fichas caem. É interessante que o último verso ("O sol nunca mais vai se pôr...") acaba repentinamente, assim como uma conversa no orelhão interrompida quando as fichas acabam. Como numa conversa de orelhão de verdade, não há tempo para uma despedida formal. Ademais, a música dialoga com o filme de que é tema: em linha gerais, Bye Bye Brasil é um filme que narra as aventuras de uma trupe de atores mambembes pelo Norte e Nordeste do Brasil na década de 70, época em que estava em andamento o projeto de modernização nacional implementado pelo militares. A caravana Rolidei (de Holiday, feriado em inglês) tenta sobreviver ao processo de globalização, já que precisa disputar com as novas tecnologias que tomam o lugar das antigas formas de diversão. A música de Chico e Menescal enuncia o cenário encontrado pela trupe mambembe, mas na voz de um viajante conversando com sua namorada Só nos dando conta disso - de que a letra da música se faz passar por um diálogo entre namorados em um orelhão, do qual sabemos só o que um deles diz (não sabemos o que a namorada do outro lado da linha está dizendo, embora possamos supor uma bronca quando ouvimos "Oh! Tenha dó de mim") - é que ela faz sentido. Senão, como aceitar um texto tão "sem coesão": "Oi coração / Não dá pra falar muito não / Espera passar o avião / Assim que o inverno passar / Eu acho que vou te buscar / Aqui tá fazendo calor / Deu pane no ventilador / Já tem fliperama em Macau / Tomei a costeira em Belém do Pará / Puseram uma usina no mar / Talvez fique ruim pra pescar / Meu amor...". Diálogo No entanto, se lemos essa música como o diálogo que ela simula ser, não temos mais um texto sem nexo, sem coesão, mas uma grande sacada, típica dos grandes escritores. Assim, essa cenografia se legitima na medida em que o texto progride, ao mesmo tempo em que ela é legitimadora desses enunciados. Nas palavras de Maingueneau, "para que uma cenografia faça sentido, é preciso que esteja em harmonia não apenas com os próprios conteúdos que sustenta, mas também com a conjuntura na qual intervém" (2006: 125). Esta análise nos serve para chamar a atenção para aspectos muitas vezes negligenciados quando se fala em leitura em sala de aula. Frequentemente, as práticas de leitura consideram o texto só dos pontos de vista do conteúdo. Ao encarar os textos como sendo compostos por uma "cena de enunciação", podemos perceber que há muitos outros elementos em jogo nos processos de significação. Ainda que uma "competência linguística" seja importante, sem nos dar conta dos outros aspectos que compõem a canção analisada (o que vale para qualquer texto) - os gêneros envolvidos, um momento histórico, um filme como pano de fundo - fica complicado (para não dizer impossível!) entender adequadamente um texto. Marcela Franco Fossey é doutoranda em Linguística na Unicamp |
sábado, 22 de janeiro de 2011
LEITURA ALÉM DA LÍNGUA
COMO COMEÇAR UMA NARRATIVA
Há dois tipos principais de narradores: um cria a história conforme a escreve; o outro pensa tudo antes de contá-la. http://www.revistalingua.uol.com.br/ Braulio Tavares é compositor, autor de Contando Histórias em Versos (Editora 34, 2005). btavares13@terra.com.br | ||||
Braulio Tavares
A Narrativa é uma forma de arte meio invisível, porque sempre aparece misturada com outras. Está em filmes, peças de teatro, óperas, histórias em quadrinhos, poemas, videogames, romances, canções, balés - sempre que cada um deles conta uma história. Ela não é necessariamente feita de palavras ou de imagens ou de gestos. É feita de agentes e ações, ou seja, personagens e acontecimentos. Se alguém quiser se aprofundar neste aspecto, pode consultar A Morfologia do Conto, de Vladimir Propp. Há algo em comum entre o romance Vidas Secas de Graciliano Ramos e o filme Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos. Por mais diferentes que sejam em matéria-prima (um romance é feito de sinais gráficos em folhas de papel, e um filme de imagens luminosas em movimento, sonorizadas), existe ali uma sucessão de eventos que é reconhecivelmente a mesma nas duas obras. A Narrativa nunca é exatamente a mesma quando muda de meio de expressão, mas está sempre lá. Existem milhares de versões das narrativas tradicionais, que geralmente são bem curtas e simples. Isto vale para uma lenda grega ou hindu, para um conto folclórico como Chapeuzinho Vermelho ou para uma anedota de português ou de bêbado. Se comparássemos um milhão de versões da história de Chapeuzinho (orais, impressas, cinematográficas, em quadrinhos, TV, teatro, desenho animado), não haveria duas iguais (a nova versão hollywoodiana do conto terá a suntuosa Amanda Seyfried, por exemplo), mas há um núcleo de elementos que é o "DNA" da história. Há textos de Claude Lévi-Strauss sobre o Mito que o descrevem também como esse conjunto de elementos, nunca exatamente os mesmos, mas presentes nas diferentes versões, e que se tornam cada vez mais nítidos quanto mais versões são consultadas. No meio cinematográfico existe uma máxima de que é mais fácil extrair um bom filme de um mau romance do que de uma obra-prima. Quando se tem uma Narrativa interessante, pode até ser mal escrita (o estilo pobre, o vocabulário de mau gosto etc.), mas se ela é mesmo uma boa história pode ser transposta sem grande perda para qualquer meio. Passa por mutação de forma, mas mantém o DNA original, a sua essência de história. Episódios de uma história são como palavras: de nada valem se não estiverem na ordem certa. Contar uma história nos obriga muitas vezes a fazer um movimento como o de uma câmara que mostra uma pintura a partir de um detalhe e daí vai se afastando, revelando uma extensão do quadro cada vez maior, e mantendo em vista o detalhe inicial. Não se deve, e na verdade nunca se pode, dizer tudo de uma vez só. Tem de dizer aos poucos, e para isto a sucessão certa de detalhes é fundamental. Nem todo grande livro ou filme precisa de boa história. A Paixão Segundo G. H. de Clarice Lispector praticamente não tem história: é o fluxo de lembranças e reflexões na mente de uma mulher que se depara com uma barata em seu apartamento. A "narrativa" do livro poderia ser resumida em duas linhas. Para fazer grande literatura, a narrativa não é essencial. Mas evidentemente muitas pessoas querem contar histórias, sim; querem usar a narrativa, sim. E nestes casos o primeiro grande desafio é justamente este: qual a história que vou contar? Eu diria que há dois tipos principais de narradores (escritores que gostam de contar histórias). O primeiro é o que precisa pensar a história inteira, saber como começa e termina, para só então começar a contá-la. Autores assim costumam fazer sinopses detalhadas, redigir dezenas de páginas de informações sobre ambientes e personagens, prever o número de capítulos, saber de antemão em qual capítulo vai acontecer esta ou aquela peripécia. Em alguns casos, ele passa mais tempo planejando do que escrevendo o livro. Outros são diferentes. Começam a contar a história sem saber que história estão contando. Em vez de terem uma visão geral, partem de um detalhe: uma cena, um fato insólito, ou um personagem curioso fazendo tal ou tal coisa. Começam daí, e todo dia, quando escrevem, avançam numa direção ou noutra, dependendo do momento que vivem, do que acabaram de ler ou ouvir. O livro vai sendo improvisado todo dia, numa navegação meio às cegas mas movida pela intuição. Autores que escrevem assim dizem às vezes: "Se eu tiver bons personagens, eu não me perco. Posso inventar qualquer maluquice, sempre vou saber como os meus personagens reagiriam a ela." Arquitetura A primeira forma de Narrativa, a planejada antes da execução, é uma espécie de narrativa arquitetural, em que se concebe uma forma geral para toda a obra e depois vão sendo resolvidos os problemas localizados, de acordo com a ideia geral que foi decidida. A segunda forma parece com improvisos de jazz, em que há sempre um fio de continuidade a que o artista se apega (no exemplo, os personagens) e o resto é improvisado. Todo improviso, claro, só tem sentido se tiver alguma restrição, senão vira bagunça. No caso do jazz, é o tom, o compasso, o tema musical proposto. Na literatura, deve haver um mínimo de coerência entre as partes da história, por mais anárquica (romances de Charles Bukowski ou Henry Miller, por exemplo, parecem compostos no clima do "tudo isto poderia ter acontecido, já que estas pessoas são assim"). A narrativa arquitetural é mais cerebral e controladora; a narrativa jazzística navega de acordo com os ventos da intuição e as marés da vida do autor. Ambas são legítimas, claro, mas vale um alerta. Há muitos autores jovens capacitados para uma delas e, por influências várias, acham que "não sabem escrever" porque leram que a única maneira certa de escrever é a outra.
"Boa história" Episódios de uma história são como palavras: de nada valem se não estiverem na ordem certa. Contar uma história nos obriga muitas vezes a fazer um movimento como o de uma câmara que mostra uma pintura a partir de um detalhe e daí vai se afastando, revelando uma extensão do quadro cada vez maior, e mantendo em vista o detalhe inicial. Não se deve, e na verdade nunca se pode, dizer tudo de uma vez só. Tem de dizer aos poucos, e para isto a sucessão certa de detalhes é fundamental. Nem todo grande livro ou filme precisa de boa história. A Paixão Segundo G. H. de Clarice Lispector praticamente não tem história: é o fluxo de lembranças e reflexões na mente de uma mulher que se depara com uma barata em seu apartamento. A "narrativa" do livro poderia ser resumida em duas linhas. Para fazer grande literatura, a narrativa não é essencial. Mas evidentemente muitas pessoas querem contar histórias, sim; querem usar a narrativa, sim. E nestes casos o primeiro grande desafio é justamente este: qual a história que vou contar? Eu diria que há dois tipos principais de narradores (escritores que gostam de contar histórias). O primeiro é o que precisa pensar a história inteira, saber como começa e termina, para só então começar a contá-la. Autores assim costumam fazer sinopses detalhadas, redigir dezenas de páginas de informações sobre ambientes e personagens, prever o número de capítulos, saber de antemão em qual capítulo vai acontecer esta ou aquela peripécia. Em alguns casos, ele passa mais tempo planejando do que escrevendo o livro. Outros são diferentes. Começam a contar a história sem saber que história estão contando. Em vez de terem uma visão geral, partem de um detalhe: uma cena, um fato insólito, ou um personagem curioso fazendo tal ou tal coisa. Começam daí, e todo dia, quando escrevem, avançam numa direção ou noutra, dependendo do momento que vivem, do que acabaram de ler ou ouvir. O livro vai sendo improvisado todo dia, numa navegação meio às cegas mas movida pela intuição. Autores que escrevem assim dizem às vezes: "Se eu tiver bons personagens, eu não me perco. Posso inventar qualquer maluquice, sempre vou saber como os meus personagens reagiriam a ela." Arquitetura A primeira forma de Narrativa, a planejada antes da execução, é uma espécie de narrativa arquitetural, em que se concebe uma forma geral para toda a obra e depois vão sendo resolvidos os problemas localizados, de acordo com a ideia geral que foi decidida. A segunda forma parece com improvisos de jazz, em que há sempre um fio de continuidade a que o artista se apega (no exemplo, os personagens) e o resto é improvisado. Todo improviso, claro, só tem sentido se tiver alguma restrição, senão vira bagunça. No caso do jazz, é o tom, o compasso, o tema musical proposto. Na literatura, deve haver um mínimo de coerência entre as partes da história, por mais anárquica (romances de Charles Bukowski ou Henry Miller, por exemplo, parecem compostos no clima do "tudo isto poderia ter acontecido, já que estas pessoas são assim"). A narrativa arquitetural é mais cerebral e controladora; a narrativa jazzística navega de acordo com os ventos da intuição e as marés da vida do autor. Ambas são legítimas, claro, mas vale um alerta. Há muitos autores jovens capacitados para uma delas e, por influências várias, acham que "não sabem escrever" porque leram que a única maneira certa de escrever é a outra. Braulio Tavares é compositor, autor de Contando Histórias em Versos (Editora 34, 2005). btavares13@terra.com.br |
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